Humphrey Carpenter detalha :
Era uma noite tempestuosa, mas eles seguiram em frente, pela Addison´s Walk enquanto discutiam o propósito dos mitos. Lewis, apesar de já ser um crente, ainda não conseguia compreender a função de Cristo no cristianismo, não conseguia perceber o significado da Crucificação e da Ressurreição. Disse que tinha de entender o propósito desses eventos – ou, como diria mais tarde numa carta ao um amigo, ‘como a vida e a morte de Outra Pessoa (quem quer que fosse) há dois mil anos pode ajudar-nos aqui e agora – exceto na medida em que seu exemplo nos possa ajudar’.
À medida que a noite passava, Tolkien e Dyson [um outro amigo dos dois, também cristão] mostraram-lhe que estava fazendo uma exigência totalmente desnecessária. Quando encontrava a idéia de sacríficio na mitologia de uma religião pagã, ele a admirava e se emocionava com ela; a idéia da deidade que morre e renasce sempre tocara sua imaginação desde que lera a história do deus nórdico Balder. Mas dos Evangelhos (diziam eles) ele estava exigindo algo a mais, um significado claro além do mito. Não poderia transferir seu apreço comparativamente tácito pelo mito para a história verdadeira?
Mas, disse Lewis, mitos são mentiras, mesmo que sejam mentiras envoltas em prata.
Não, disse Tolkien, não são.
E, indicando as grandes árvores do bosque de Magdalen cujos ramos se curvavam ao vento, enveredou por uma linha diferente de argumentação.
Você chama uma árvore de árvore, disse, e não pensa mais na palavra. Mas não era “árvore” até que alguém lhe desse esse nome. Você chama uma estrela de estrela, e diz que é só uma bola de matéria que se move numa trajetória matemática. Mas isto é meramente como você a vê. Nomeando e descrevendo as coisas dessa maneira, você está apenas inventando seus próprios termos para elas. E assim como a fala é uma invenção sobre objetos e idéias, assim também o mito é uma invenção sobre a verdade.
Viemos de Deus (continuou Tolkien), e inevitavelmente os mitos que tecemos, apesar de conterem erros, refletem também um fragmento da verdadeira luz, da verdade eterna que está com Deus. De fato, apenas ao fazer mitos, ao se tornar “subcriador” e inventar histórias, é que o Homem pode se aproximar do estado de perfeição que conhecia antes da Queda. Nossos mitos podem ser mal orientados, mas dirigem-se, ainda que vacilantes, para o porto verdadeiro, ao passo que o “progresso” materialista conduz apenas a um enorme abismo e à Coroa de Ferro do poder do mal.
(…)
Quer dizer, perguntou Lewis, que a história de Cristo é simplesmente um mito verdadeiro, um mito que nos afeta da mesma forma que os outros, mas um mito que realmente aconteceu? Nesse caso, disse ele, começo a compreender.
(…)
Doze dias depois, Lewis escreveu ao amigo Arthur Greeves: ‘Acabo de converter-me da crença em Deus à crença definitiva em Cristo – no cristianismo. Tentarei explicar isto em outra ocasião. Minha longa conversa noturna com Dyson e Tolkien teve muito a ver com isso’.
(…)
E Tolkien escreveu no seu diário: ‘A amizade com Lewis compensa muita coisa, e além de dar prazer e conforto constantes me fez muito bem pelo contato com um homem ao mesmo tempo honesto, valente, intelectual – um erudito, um poeta e um filósofo – e um amante, ao menos após uma longa peregrinação, de Nosso Senhor’.
“Por muito tempo, ele foi o meu único público”, disse Tolkien, reconhecendo a dívida que tinha com Lewis. Foi em sua homenagem que ele escreveu o poema que seria o germe de seu pensamento em relação a “O Silmarillion” e ao “O Senhor dos Anéis” – “Mythopoeia”. Ele o leu numa conferência proferida em St. Andrews no dia 8 de março de 1939, dois anos depois do sucesso de “O Hobbit”. Como o tema era justamente “o conto de fada”, parece que Tolkien queria provar ao público e a si mesmo que não era um escritor de livros infantis, mas sim um erudito, que estava “por dentro da língua”, e que podia criar suas próprias teorias sobre a função de um contador de histórias. “Mythopoeia” era o ponto crucial de suas idéias:
O coração do homem não se compõe de mentiras,
mas retira alguma sabedoria do único Sábio,
e ainda O relembra. Embora há muito alheado,
o Homem não está totalmente perdido ou mudado.
Degradado talvez, mas não estronado,
mantém os farrapos do domínio outrora seu:
o Homem, Subcriador, a luz refratada
através da qual um único Branco se fende
em muitos tons, e infinitamente combinada
em formas vivas que se movem de uma mente à outra.
Embora tenhamos preenchido todas as frestas do mundo
com Elfos e Duendes, ousado moldar
Deuses e suas casas com a escuridão e a luz,
e semeado a semente de dragões – era nosso direito
(usado ou abusado). Esse direito não decaiu:
ainda criamos pela lei na qual fomos criados.
- Tradução de Ronald Eduard Kyrmse
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